Grupo evangélico ataca terreiro de candomblé em Alagoinhas e bate bíblias em portão: ‘Satanás vai morrer’
Mas foi justamente em um momento em que a maioria dos filhos de santo da casa estava longe, que o terreiro sofreu o mais violento ataque de seus 10 anos de história. Por volta das 23h30, um grupo de cerca de 50 pessoas seguiu até a frente do Ilê Asé Oyá L’adê Inan. Gritando frases como ‘Satanás vai morrer’ e ‘Vamos invocar Jesus para fechar a casa de Satanás’, membros do grupo batiam com uma Bíblia na porta do terreiro.
Por cerca de 20 minutos, fizeram uma espécie de “culto” diante da casa de candomblé. Em vez de palavras de paz e tolerância, contudo, vieram ataques diretos à religião de matriz africana.
“Eles fizeram um escândalo, gritando pela rua e chamando atenção do bairro inteiro. Esperaram o terreiro esvaziar, porque no fim de semana todo tinha gente lá, para pegar a pessoa dormindo, desprevenida e sem poder se defender. É uma atitude fria, de racismo religioso, para que a gente tenha medo de cultuar nossos antepassados”, afirmou a yakekerê (mãe pequena) do terreiro, Fernanda Júlia Onisajé, também filha biológica da ialorixá.
Durante todo o período em que as pessoas estiveram lá, a mãe de santo, Mãe Rosa, ficou dentro de casa. Com medo, ela e a irmã preferiram não sair do local até que o grupo não estivesse mais lá. Mesmo assim, um dos filhos de santo da casa, que mora na mesma rua, conseguiu registrar, à distância, alguns instantes da ação do grupo.
No vídeo, a pessoa que gravou diz que um grupo de evangélicos está na frente da casa de Mãe Rosa, fazendo uma oração na rua. Nas imagens, é possível ouvir gritos e ver um grupo de pessoas andando de um lado para o outro.
A ialorixá da casa, Mãe Rosa de Oyá, estava sozinha com uma irmã, no momento do ataque (Foto: Adeloyá Magnoni/Divulgação) |
Igrejas em volta
De acordo com a yakekerê, o terreiro, que fica no bairro de Santa Terezinha, na localidade do Ferro Aço, está rodeado de igrejas evangélicas. No entanto, a convivência sempre foi pacífica. As duas moradoras dos imóveis imediatamente vizinhos ao templo religioso – tanto do lado esquerdo quanto do direito – também são protestantes. Da mesma forma, nunca houve desrespeito.
“As pessoas das igrejas respeitam muito minha mãe, que viu muitas pessoas nascerem e crescerem ali. A gente estranhou porque nunca viu nada nesse sentido, mas tem indícios de que partiu de uma igreja nova que criou uma sede no bairro. É uma igreja ultradireitista e fundamentalista”, explica Fernanda.
Antes mesmo da existência do terreiro ali, Mãe Rosa já morava no bairro. Já era mãe de santo – com 60 anos hoje, vai fazer 30 anos de candomblé em 2020. Por isso, conhece boa parte da comunidade. Uma pessoa que mora na rua, inclusive, já se dispôs a ser testemunha do caso nos órgãos responsáveis.
No mesmo terreno do terreiro, fica a casa da ialorixá (Foto: Adeloyá Magnoni/Divulgação) |
A testemunha já teria identificado o nome da igreja, do pastor e de alguns dos envolvidos. A yakekerê prefere, porém, não divulgar as identidades até que tudo seja confirmado.
“Nunca sofremos nada nesse formato. Tem aquele ataque cotidiano de ser abordado na rua. Essas coisas acontecem. Mas algo com essa violência, não. Foi tão violento que uma de nossas vizinhas, evangélica, chegou a passar mal”, diz Fernanda.
Fernanda e outros filhos da casa já registraram a ocorrência no Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção de Igualdade Racial do Estado (Sepromi), e já comunicaram ao Ministério Público do Estado (MP-BA). Eles também pretendem denunciar o caso à Polícia Civil.
“A gente não vai deixar passar impune. A gente vai se mobilizar, estamos conclamando os irmãos de axé. A gente tem que se mobilizar e se respaldar, porque o ódio é uma ação de guerra”, alerta.
Prestes a completar 30 anos no candomblé, Mãe Rosa teme sofrer novos ataques (Foto: Adeloyá Magnoni/Divulgação) |
Vídeo
Quem registrou as imagens foi o bailarino Ivan Pina, 19 anos, que é filho de santo da casa e mora na mesma rua do terreiro. Ele conta que, no início, não percebeu o que estava acontecendo. Ouviu o barulho, mas achou que era alguma confusão na rua. Demorou alguns minutos até ir à porta de casa para entender a situação.
Quando finalmente chegou ao portão, viu o grupo de pessoas gritando. “Eles podem falar que foi um culto na rua, mas, um dia antes, no domingo, a gente estava fazendo uma cerimônia para as iabás (orixás femininos). Tinham jogado um agari na rua, que é um elemento para Exu e os evangélicos devem ter visto, porque não é uma rua movimentada”, explica.
Ainda que tenha gravado o vídeo, Ivan não saiu de casa. Assim como a Ialorixá, teve medo que o ataque tomasse proporções ainda maiores. Durante o período em que as pessoas estiveram lá, ele diz ter pensado que o templo religioso seria invadido.
“Conheço Mãe Rosa desde os quatro anos, então tenho um afeto muito grande por ela. Não é a primeira vez que acontece uma agressão a ela, nem a mim. Mas desse tamanho, esse afronte, é assustador. Me senti totalmente invadido, mesmo que eles não tenham entrado na casa”, revela Ivan.
Acompanhamento
Através da assessoria, a Sepromi confirmou que foi acionada para acompanhar o caso através do centro de referência desde as primeiras horas desta terça-feira (28). O órgão orientou os filhos da casa sobre a necessidade de registrar o atentado na delegacia mais próxima para a produção de um boletim de ocorrência.
Além disso, a secretaria informou que acionou também os outros órgãos que compõem a Rede Estadual de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa – Ministério Público do Estado (MP-BA), Defensoria Pública do Estado (DPE) e Tribunal de Justiça do Estado (TJ-BA). O objetivo desse contato é elaborar estratégias para a mediação do conflito. “O Centro Nelson Mandela colocou à disposição o serviço de orientação jurídica e acompanhamento do caso, desde que foi notificado pela comunidade religiosa”, completam, em nota.
Ao CORREIO, a presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB-BA), Maíra Vida, destacou que acredita ser “evidente” a premeditação e intencionalidade.
“Do que tivemos notícia, em contato direto com uma das filhas da casa, um grupo religioso de identidade evangélica fez um cerco ao templo de culto, que trata-se de propriedade privada na qual funciona o terreiro e a residência da yalorixá, num momento de esvaziamento, que contava com a presença de apenas duas sacerdotisas, idosas, após cerimônias no final de semana que garantiram um intenso trânsito de fiéis. É evidente a premeditação e intencionalidade”, diz.
Segundo a advogada, o crime cometido foi de racismo religioso – não de injúria religiosa. A tipificação penal deve remontar ao artigo 20 da Lei 7.716, que fala sobre o racismo.
“O escárnio incidiu sobre o templo de culto por conta da manifestação de religiosidade que lhe é característica de matriz africana, que possui proteção constitucional como qualquer outra confissão religiosa. Mas, ainda assim, a forma foi acovardada. O desrespeito foi dirigido precipuamente à comunidade religiosa, ao terreiro, utilizando-se como via as suas lideranças e com o atingimento de sua esfera privada”, reforça a presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-BA, Maíra Vida.
Além disso, o grupo religioso pode ser indiciado como organização criminosa. “Houve turbação da ordem social e há uma gama de infrações penais que emergem desse caso e todas apontam para a o crime de racismo religioso”.
A Frente Nacional Makota Valdina emitiu uma nota se solidarizando com o Ilê Asé Oyá L’adê Inan. No texto, a entidade destaca o racismo institucional e a violação do respeito ao livre exercício de culto e da garantia de proteção aos locais de culto. Eles pedem que órgãos públicos competentes tenham atenção para o caso.
“Salientamos que estes e todos os casos de violência contra os nossos terreiros precisam ser combatidos de todas as formas, com medidas de proteção, políticas públicas, ebós coletivos e interpelação judicial para que seja exigido o respeito às tradições de matriz africana”.
A agressão ao terreiro Ilê Asé Oyá L’adê Inan, em Alagoinhas, chamou a atenção também do Ministério Público do Estado (MP-BA). A promotora Andrea Borges contou que casos assim não são comuns na cidade e que vai instaurar um procedimento para apurar.
“Vou aguardar que as vítimas procurem o Ministério Público. Mas, independentemente disso, vamos apurar o que aconteceu. Por enquanto, fomos informados do caso apenas pela imprensa”, disse.
Como denunciar
A Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) tem uma rede de atendimento contra a intolerância religiosa nos municípios. O contato deve ser feito através dos telefones (71) 3117-7448/7445, do Centro Nelson Mandela.
Também é possível comparecer diretamente no centro, que fica na Avenida Manoel Dias da Silva, nº 2.177, na Pituba. O centro funciona no mesmo prédio da Sepromi, junto à Praça Nossa Senhora da Luz. Além disso, é possível registrar a denúncia na Ouvidoria Geral do Estado, através do número 0800 284 0011.
Outra forma de denunciar ataques é através do aplicativo Mapa do Racismo, lançado em novembro pelo MP-BA. Na prática, depois que o cidadão baixar o app e fizer a denúncia, uma equipe gestora vai encaminhar a demanda para a comarca devida e, em seguida, o MP-BA entrará em contato com a vítima.
Números de casos de intolerância religiosa e racismo no estado
Dados do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela.
Total geral – 544 (dados desde 2013, quando o equipamento foi inaugurado)
Intolerância – 170
Racismo – 312
Casos correlatos – 61
2013, total – 14 casos
Racismo – 8
Intolerância – 2
Correlatos – 4
2014, total – 72 casos
Racismo – 31
Intolerância – 22
Correlatos – 19
2015, total – 92
Racismo- 44
Intolerância – 29
Correlatos – 19
2016, total – 95
Racismo – 58
Intolerância – 32
Correlatos – 5
2017, total – 66
Racismo – 45
Intolerância – 21
2018, total – 141 casos
Racismo – 84
Intolerância – 47
Fatos correlatos – 10
2019, total – 64 casos
Racismo – 41
Intolerância – 19
Fatos correlatos – 4
Confira alguns dos casos recentes de intolerância religiosa no estado
Janeiro 2000 – Itapuã, Salvador
A ialorixá Mãe Gilda dos Santos, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, teve um infarto fulminante em 21 janeiro de 2000. Ela morreu pouco depois de ver uma manchete com a foto dela no jornal Folha Universal, que a chamava de “macumbeira charlatã”. Dois meses antes, o terreiro foi depredado. A data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
Julho de 2001 – Tancredo Neves, Salvador
Dois terreiros de candomblé no bairro de Tancredo Neves foram atingidos por punhados de enxofre e sal, lançados nas paredes e portas. As vítimas foram o terreiro São Roque, na Rua Direta do Beiru, e o terreiro Olufã Anancidê, na Rua Bahia.
8 de agosto de 2004 – Lapa, Salvador
Um grupo de integrantes do terreiro Eliaxé Ominsilê, de Narandiba, foi atacado enquanto distribuía pipoca e arrecadava donativos para evento em homenagem a Obaluayê. O fato aconteceu próximo à Estação da Lapa. Um mulher evangélica bateu com a Bíblia na face de oito filhos e filhas de santo, aos gritos de “sai satanás”. Foi preciso duas viaturas para levar todos para a delegacia.
2015 – Juazeiro, Vale do São Francisco
O terreiro Ilê Abasy de Oiá Gnan, em Juazeiro, foi invadido durante a madrugada. Os vândalos arrombaram a porta e destruíram cadeiras, mesas e outros móveis. As telhas foram quebradas e quadros foram rasgados. As paredes do terreiro foram marcadas com cruzes. Em 2018, a casa foi apedrejada.
2017 – Curuzu, Salvador
O terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, no Curuzu, foi invadido por policiais militares do Batalhão de Choque durante uma operaçãod de combate ao tráfico de drogas. O pai de santo Amilton Costa contou que chegou a ter armas apontadas para a cabeça.
2018 – Fazenda Grande do Retiro, Salvador
Alexandre Santos Silva foi baleado por um vizinho depois de tentar colocar uma oferenda religiosa na rua onde mora. O crime aconteceu às 5h20.
2018 – Vasco da Gama, Salvador
O muro da Casa de Oxumarê foi pichado com as palavras “Jesus é o caminho”. O babalorixá, Babá Pecê, disse que os ataques e a tentativa de interromper ou impedir que o terreiro funcione são constantes.
2018 – Cajazeiras, Salvador
A Pedra de Xangô, monumento sagrado e tombado pela Prefeitura de Salvador, foi vítima de vandalismo por duas vezes em três dias. Foram jogados mais de 100 quilos de sal no local. Em 2014, foram 200 quilos.
9 de abril de 2019 – Salvador
Um homem postou um vídeo em suas redes sociais criticando a implantação da escultura em homenagem à ialorixá Mãe Stella de Oxóssi – que fica entre a Avenida Paralela e a via que leva seu nome.
Nas imagens, ele aparece com uma Bíblia na mão afirmando que Deus estaria “irado” com a estátua e que teria falado com ele que iria “balançar a cidade de Salvador” e as “lideranças de Salvador”.
12 de janeiro de 2019 – Barra do Pojuca, Camaçari
Seis homens armados invadiram o terreiro Ilê Axé Ojisé Olodumare, em Barra do Pojuca, na cidade de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador. O babalorixá da casa e um fotógrafo foram agredidos com uma coronhada na cabeça, cada. Integrantes do terreiro relatam que os bandidos chegaram a tentar roubar celulares de pessoas que estavam incorporadas.
1º de janeiro de 2019 – Cajazeiras, Salvador
Três dias após ter sido atingida com mais de 100 quilos de sal, a Pedra de Xangô voltou a ser atacada. Novamente, pessoas não identificadas despejaram sal no monumento sagrado que é tombado como patrimônio histórico pela prefeitura de Salvador. A quantidade de sal, que não foi divulgada, foi menor do que a do atentado anterior.
“Infelizmente, esta não é a primeira vez que esse tipo de crime é cometido contra a Pedra de Xangô. Em 8 de novembro de 2014, eles utilizaram a mesma prática. Na época, a Pedra ficou imersa em cerca de 200 kg de sal de cozinha e vários sacos plásticos em sua volta, da mesma forma que agora”, contou, na ocasião, a advogada Maria Alice Pereira, responsável pela petição entregue ao Ministério Público da Bahia e uma das idealizadoras do portal oficial do monumento religioso, ao CORREIO.
30 de dezembro de 2018 – Bahia
Mãe Stella de Oxóssi, que morrera três dias antes, aos 93 anos de idade, foi alvo de intolerância religiosa nas redes sociais. Em postagens no Instagram, internautas ofenderam a Ialorixá, considerada uma das mais importantes líderes religiosas do país.
Entre os comentários, vindos de perfis que se diziam evangélicos, estavam frases como “um macumbeiro a menos” e “satanás é descarado mesmo”.
Na mesma ocasião, Mãe Stella também foi alvo de lesbofobia. Ela era casada com a psicóloga Graziela Domini, 55.
29 de dezembro de 2018 – Cajazeiras, Salvador
A Pedra de Xangô, monumento sagrado e tombado pela prefeitura da capital, foi atacada e vítima de vandalismo. Foram jogados mais de 100 quilos de sal no local, que precisou ser varrido pela Limpurb.
Outubro de 2018 – Avenida Vasco da Gama, Salvador
As paredes do muro da Casa de Oxumarê foram pichadas com as palavras “Jesus é o caminho”. Na ocasião, o babalorixá do terreiro, Babá Pecê, ressaltou ao CORREIO que os ataques e a tentativa de interromper ou impedir que o terreiro funcione são constantes.
Ao longo de 2018, até a presença do terreiro nas redes sociais foi atacada. A página da Casa de Oxumarê no Facebook sofreu ataques em massa, chegando a ser retirada do ar.
“Eles estão denunciando em massa a nossa página no Facebook. A página chegou a ser desativada, mas nós entramos em contato com o Facebook e conseguimos colocá-la no ar novamente”, explicou o babalorixá.
11 de outubro de 2018 – Fazenda Grande do Retiro, Salvador
Alexandre Santos Silva foi baleado por um vizinho, na manhã do dia 11 de outubro, depois de tentar colocar uma oferenda religiosa na rua. O crime aconteceu por volta das 5h20, na Rua Fazenda Grande do Retiro, no bairro de Fazenda Grande do Retiro.
De acordo com informações do boletim de ocorrência do posto da Polícia Civil do Hospital Geral do Estado (HGE), Alexandre foi até a rua onde mora para colocar uma oferenda, quando um vizinho, que não teve o nome divulgado, se irritou com a vítima.
26 de agosto de 2018 – Juazeiro
O terreiro Ilê Abasy de Oiá Gnan, que fica em Juazeiro, no Vale do São Francisco, foi apedrejado durante todo o dia. Assustada, a ialorixá teve que sair de casa para evitar uma crise de hipertensão.
As pedras eram jogadas pelo telhado. O terreiro já vinha sendo alvo de agressões desde 2015.
27 de janeiro de 2018 – Fazenda Coutos, Salvador
Por volta das 15h, oito membros do Terreiro Ilê Axé Torrun Gunan, em Fazenda Coutos, estavam no local, quando a casa foi invadida por policiais militares das Rondas Especiais (Rondesp) e do Pelotão Especial (Peto).
Eles afirmaram estar à procura de supostos traficantes que teriam se escondido no local. Os PMs, de acordo com membros da casa, atiraram quatro vezes contra a casa e entraram em um quarto considerado sagrado para os adeptos da religião. Durante a ação, um ogã do terreiro chegou a ser detido sob a acusação de desacato policial.
Fonte: Correio