Um advogado muito vivo: réu é dado como morto e excluído de processo

João Lopes de Oliveira foi achado pelo CORREIO em Alagoinhas (Foto: Mauro Akiin Nassor/CORREIO)

TJ-BA incluiu nos autos uma certidão de óbito de homônimo de advogado processado

Arritmia cardíaca, insuficiência cardíaca crônica, diabetes e trombose. As causas indicadas na certidão de óbito não deixam dúvida: João Lopes de Oliveira, 83 anos, está morto. Mal sabe ele que, enquanto desfruta do descanso eterno em uma sepultura em Santo Estevão, no Centro-Norte da Bahia, João Lopes tem o seu nome usado em situações escusas.

Documentação que o CORREIO obteve com exclusividade comprova que, em julho deste ano, outro João Lopes de Oliveira, no caso um conhecido advogado de Alagoinhas de 67 anos, teve o nome retirado de um processo em que é acusado de fraude de concurso público em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. Ele foi dado como morto, mas o CORREIO o localizou bem vivo, trabalhando na cidade onde mora, como mostra a foto usada nesta reportagem.

Acontece que a certidão de óbito do João Lopes, de Santo Estevão, foi apresentada à Justiça como se fosse de seu xará. Assim, o advogado acusado de fraude teve sua “punibilidade” extinta em uma ação penal que tem outros dois réus – seu filho, João Lopes de Oliveira Júnior, também advogado, e o empresário Júlio César Souza da Cruz.

Apesar da divergência dos dados, certidão de óbito de homem de 83 anos foi usada como se fosse de advogado de 67
(Imagem: Reprodução/TJ-BA)

O processo
Tudo começou em março de 2013, quando o advogado foi denunciado pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) por participar de um esquema de fraude de licitações em concursos públicos. A denúncia, das promotoras Alice Alessandra Ataíde Jácome e Márcia Rabelo Sandes, afirma que os denunciados, enquanto sócios-administradores da CBI (Centro Brasileiro de Informática) e Cibrascon (Companhia Brasileira de Concursos), “frustraram o caráter competitivo do procedimento licitatório”.

Ainda segundo o MP-BA, João Lopes de Oliveira seria o gerenciador de todo o esquema, que consistiu na participação de empresas vinculadas entre si por um mesmo grupo dirigente “no intuito de aferir vantagem decorrente” do serviço de execução do processo seletivo para Regime Especial de Direito Administrativo (Reda).

As empresas – que, segundo a denúncia, são controladas pelo advogado João Lopes de Oliveira – apresentavam certidões negativas de débitos falsas para burlar a fiscalização e serem consideradas habilitadas a participar dos chamamentos públicos.

Os três responderam ao processo por quase cinco anos. Até que, quatro meses atrás, em julho de 2018, a certidão de óbito que seria do réu João Lopes de Oliveira foi juntada ao processo. Prontamente, a juíza Ana Gabriela Duarte Trindade, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Simões Filho, extinguiu a “punibilidade” de João Lopes de Oliveira por falecimento.

A sentença da juíza tem apenas duas folhas e informa que a “consonante” certidão de óbito foi acostada às folhas 2665 do processo e diz que o documento está “devidamente autenticado”. Por algum motivo, a magistrada não deu importância às evidências que mostravam as incoerências do documento.

Certidão é de um homem que morreu aos 83 anos em 2011; o advogado tem 67 e responde a processo desde 2013
(Imagem: Reprodução)

16 anos mais novo
Dados fundamentais da certidão de óbito, registrada no 2º Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais de Feira de Santana, não batem com o processado. Coincidem apenas os nomes completos dele e da mãe: Maria Lopes de Oliveira. O pai do advogado é Ademar Leal de Oliveira, enquanto o pai do falecido era Cândido Lopes de Oliveira.

A naturalidade, como dito, também é diferente. Se um é de Santo Estevão, o outro é de Nova Soure, no Nordeste baiano. O verdadeiro morto faleceu aos 83 anos. Registro Geral e CPF também não batem.

‘Morto’ assinou defesa
A pior de todas as incoerências diz  respeito ao ano da morte. O João Lopes de Santo Estevão morreu em 4 de janeiro de 2011, às 16h40. Logo, dois anos antes de o João Lopes advogado ser processado.

A defesa do réu, elaborada e entregue à Justiça em 15 de julho de 2013, foi assinada pelo próprio dois anos depois de ele ter “morrido”. Curioso é que a sentença da juíza informa que João Lopes morreu em 2011, antes de ela aceitar a denúncia do MP-BA.

Campana
Bastou uma consulta básica no Cadastro Nacional de Advogados para confirmar que João Lopes tem a sua carteira da Ordem dos Advogados do Brasil ativa. Mas, para comprovar que ele está vivo, a partir dos endereços indicados na ação penal e na defesa de 127 páginas apresentada pelo advogado, o CORREIO tentou localizá-lo em Salvador e em Alagoinhas.

Nessas cidades, funcionariam filiais dos seus escritórios de advocacia e das empresas de concurso (Cibrascon) e de informática (CBI).

As sedes dessas empresas têm um mesmo endereço na cidade de Sátiro Dias, na região de Alagoinhas. Inicialmente, a reportagem foi a um edifício no bairro da Graça, área nobre da capital baiana, onde João Lopes seria o proprietário de um apartamento. Os funcionários confirmaram que o advogado tem imóvel no local, mas o frequenta só nos finais de semana.

Já um dos escritórios e a sede da empresa de concursos funcionaria na Rua Professor Américo Simas, nº 13, em Nazaré. Foi lá que, na Lopes & Unfried Advogados, o CORREIO obteve a informação de que João Lopes, o pai, morava e trabalhava como advogado atualmente em Alagoinhas. O belo prédio que sedia o escritório em Salvador seria usado para a atuação de João Lopes de Oliveira Júnior, o filho, junto com seus sócios.

Reportagem do CORREIO encontrou advogado dado como morto trabalhando em Alagoinhas
(Foto: Mauro Akiin Nassor/CORREIO)

Após duas visitas a Alagoinhas, localizamos João Lopes de Oliveira. Ele não só está vivo, como parece trabalhar normalmente. O escritório fica num imóvel de dois andares no bairro Luis Viana, na Rua Coronel Pedro Dantas, 108.

Quando o advogado deixou o escritório, a equipe do CORREIO se apresentou. Ao confirmar que se tratava de João Lopes de Oliveira, o interpelamos sobre a fraude à licitação e o atestado de óbito que gerou a decisão da juíza:

– Não tô sabendo disso, não…

– Não tá sabendo não, né? Porque foi apresentando um atestado de óbito do senhor…

– Meu não! Eu tô vivo!

– A gente tem isso aqui, ó. Aqui o atestado de óbito… E a sentença. João Lopes de Oliveira.

Assim que recebeu a certidão, João Lopes de Oliveira prontamente apontou para os nomes dos pais.

– E o nome dos pais? Esse atestado não é meu. Aqui! Cândido Lopes de Oliveira. Pai…

– É isso.. Os pais tão com o nome diferente…

– Quer ver o nome do meu pai?

– Os pais tão com nome diferente. Mas o nome do senhor foi retirado do processo. Tem a decisão de uma juíza…

O advogado admitiu que realmente responde processo por fraude de licitação, mas não explicou como a certidão de óbito de 2011 de um homônimo foi parar nos autos do processo em 2018 e o beneficiou.

– O processo lá em Simões Filho, que estava em segredo de Justiça, eu tô esperando para ser intimado… Agora, isso aí eu não sabia. Vocês têm que investigar quem foi que juntou a certidão ao processo. Se foi o Ministério Público, quem foi? Porque o nome do rapaz, pelo que eu tô vendo aí, é o mesmo. É homônimo.

– É, o que eu queria entender é porque alguém iria colocar o atestado de óbito no nome do senhor pra retirar o nome do senhor.

– E aí diz quem foi que juntou esse atestado, não?

– Não…

– Procure saber disso…

Juíza reverteu a própria sentença
O artigo 62 do Código de Processo Penal traz uma máxima em latim: mors omnia solvit (a morte tudo resolve). Nem sempre. No caso da Juíza Ana Gabriela Duarte Trindade, que assinou sentença em que tira a culpabilidade de um réu por morte, ela teve que voltar atrás.

Por três vezes, o CORREIO procurou a juíza da 2ª Vara Criminal de Simões Filho. Em uma delas, ao tomar conhecimento do conteúdo da reportagem, a magistrada marcou para nos atender no dia seguinte, mas mudou de ideia.

Em vez disso, ela preferiu reverter a própria sentença em que exclui a “punibilidade” de João Lopes de Oliveira do processo. Na nova decisão, assinada na quarta-feira (22), a juíza admite o erro.

“Constatei a existência de evidente erro material na sentença”, escreveu a magistrada, talvez esquecendo-se de que quem constatou na verdade foi a reportagem.

A juíza segue admitindo que “os dados de identificação não condizem com o do réu da presente ação penal”. Ana Gabriela explica que a informação de provável falecimento do réu foi extraída de um sistema do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), que teria motivado a busca do óbito em um sistema de certidões.

Juíza admite erro material e volta atrás: João Lopes Oliveira é réu novamente
(Imagem: Reprodução/TJ-BA)

“O sistema oferece como meio de busca apenas a inserção do nome da parte e de sua genitora. Procedida dessa maneira a busca, foi encontrada a certidão de óbito inserida nos autos, que é autêntica, mas não se refere, de fato, ao réu da ação penal”, observou a juíza.

Em seguida, a magistrada reverte a própria sentença anterior, que extinguia a punibilidade de João Lopes de Oliveira. E cita o artigo 62 do Código Processo Penal, mors omnia solvit (em latim: a morte tudo resolve), que, diz a juíza, deve ser aplicada nos casos em que de fato houve a morte e “não quando tomada por equívoco”.

Por fim, Ana Gabriela determina o retorno dos autos “ao status quo anterior”. Portanto, João Lopes de Oliveira volta a figurar como réu do processo, junto com João Lopes de Oliveira Júnior e Júlio César Souza da Cruz. Na mesma sentença, a juíza intima João Lopes de Oliveira Júnior a constituir um novo advogado no processo.

Procurado, o TJ-BA nos enviou a nova decisão da juíza e reafirmou que tudo se deu por conta de um equívoco cometido por uma servidora pública. O nome de Diana Deyse Cardoso de Santana aparece no canto do documento como a pessoa que assina digitalmente a certidão. Sem citá-la, o TJ livra a juíza que assinou a sentença de qualquer responsabilidade.

“A Juíza de Direito Ana Gabriela Duarte Trindade foi diligente ao detectar que a certidão de óbito tratava de um homônimo com o nome da genitora idêntico a do réu, o que teria motivado a decisão. Imediatamente corrigiu a falha sem causar danos às partes envolvidas”, diz nota do TJ.

Por telefone, a assessoria do órgão justificou que o equívoco ocorreu porque o novo sistema eletrônico alertou sobre a existência de uma certidão de óbito em nome de um processado. Ao pesquisar a certidão, a serventuária não teria checado a data (2011) e as informações complementares.

Advogado gerenciava todo o esquema de fraude, diz MP-BA
O esquema envolvendo o advogado morto-vivo e o filho, além de Julio César Souza da Cruz, ainda tem muitas perguntas sem resposta. Segundo a denúncia do Ministério Público, que deu origem a uma ação penal em 2013, a empresa de concursos de João Lopes de Oliveira está envolvida em uma série de episódios relativos a fraudes a licitações nos estados da Bahia e Sergipe.

De acordo com a peça do MP, inicialmente, as empresas falsificavam certidões negativas de débitos relativos às contribuições previdenciárias. O objetivo era, mesmo sem condições legais, participar das licitações. Depois, elas frustravam o caráter competitivo dos concursos, já que as empresas que participavam das licitações faziam parte de um mesmo grupo.

Além das empresas CBI (Centro Brasileiro de Informática) e Cibrascon (Companhia Brasileira de Concursos), mais três pessoas jurídicas (Seprod, Asseplac e Ibrascon) participavam do esquema. Apesar dos sócios diferentes dessas empresas, diz a denúncia, todas eram ligadas ao advogado João Lopes de Oliveira, que seria o “gerenciador de todo o esquema”.

Segundo denúncia do MP-BA, advogado João Lopes de Oliveira gerenciava todo o esquema de fraude
(Imagem: Reprodução)

Na época da denúncia, a CBI, que tinha como sócio-administrador Júlio César Souza da Cruz, tinha sede na cidade de Sátiro Dias, na Bahia, no mesmo endereço da Ibrascon. Esta última era pessoa jurídica constituída por João Lopes de Oliveira, que também é sócio-proprietário da Cibrascon juntamente com seu filho.

A Cibrascon depois virou Conan e foi responsável pelo processo licitatório de Simões Filho. Esta, por sua vez, tem o mesmo endereço da empresa Asseplac, em Salvador, onde residiria Júlio Tácio Andrade Lopes de Oliveira, outro filho de João Lopes. Julio Tácio sucedeu o pai no quadro social da Cibrascon.

A denúncia aponta que os sócios da Asseplac também já integraram a Ibrascon. Investigações apontaram que o servidor Bahia Host Internet seria responsável pelas empresas Asseplac e Seprod, sendo seu ato constitutivo formalizado por João Lopes de Oliveira. Já a Seprod teria como sócio- proprietário João Henrique Mutis Lopes de Oliveira, outro filho de João Lopes.

A polícia de Sergipe descobriu que o site da empresa CBI está hospedado no mesmo provedor (Bahia Host Internet) da Asseplac e Seprod, tendo como responsável João Henrique Mutis Lopes. Todas essas empresas participariam dos mesmos processos licitatórios. No caso de Simões Filho, as investigações viraram ação penal.

A inautenticidade das certidões foi contatada pela Controladoria Geral do Município de Simões Filhos e uma sindicância foi aberta a pedido da Procuradoria Jurídica do município. No caso desta cidade, o processo culminou com a anulação da licitação e dos contratos decorrentes desta. O TJ-BA não informou qual o resultado deste processo. Na busca eletrônica processual, a última audiência de instrução teria ocorrido em outubro.

Ainda não se sabe quantos certames, além dos de Simões Filho, foram colocados em suspeição e nem qual o impacto das ações das empresas administradas por João Lopes de Oliveira na vida das pessoas que faziam as seleções. Quantas contratações deixaram de ser feitas no concurso para Redas de Simões Filho? E nas outras cidades? Serviços foram impactados? Procurada, a Prefeitura de Simões Filho disse que precisaria de mais tempo hábil para responder alguns desses questionamentos, o que seria feito nesta terça-feira (27).

Procurado, o Ministério Público sugeriu que a reportagem consultasse o Tribunal de Justiça da Bahia sobre o assunto.

Réus por fraude, pai e filho atuam como advogados
Na cidade de Alagoinhas, no Nordeste da Bahia, João Lopes de Oliveira é tido como um advogado experiente. Com décadas de atuação, construiu um patrimônio visível a quem quer que passe na frente do seu escritório, na Rua Coronel Pedro Dantas, bairro Luis Viana.

Seguindo os passos do pai, João Lopes de Oliveira Júnior também está entre os denunciados pelo Ministério Público da Bahia por fraude em licitação na cidade de Simões Filho. Sócio da Lopes & Unfried Advogados, o filho de João Lopes de Oliveira atua na área trabalhista. O escritório funciona em Nazaré, em Salvador, em um dos endereços indicados no processo como sendo de João Lopes, o pai.

O mesmo endereço está atrelado ao CNPJ da empresa Companhia Nacional de Concursos LTDA, envolvida no processo de fraude. Procurado pela TV Bahia na sexta-feira (23), João Lopes de Oliveira Júnior chegou a marcar uma entrevista com a repórter Andréa Silva na manhã desta segunda-feira (26). A equipe de TV, porém, não foi atendida pelo advogado.

Fonte :Correios

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