PMs do DF são denunciados por tortura e sumiço de 50 kg de maconha
Conforme as investigações, 14 policiais teriam cometido uma série de irregularidades durante operação contra o tráfico de drogas
As investigações reúnem provas de que, para chegar até o entorpecente, os militares cometeram uma série de condutas graves, sujeitando, inclusive, um traficante a sessões de choque nas partes íntimas. O Metrópoles teve acesso à íntegra do processo e revela detalhes do caso. Os documentos foram obtidos por meio da Justiça.Os PMs foram alvo de duas investigações da Polícia Civil. Uma delas teve como braço de apoio o MPDFT e a Corregedoria da própria PMDF. Os acusados seguem presos preventivamente.
De acordo com o relatório final da Coordenação Especial de Combate à Corrupção, ao Crime Organizado e aos Crimes Contra a Administração Pública (Cecor), PMs lotados no Centro de Inteligência (CI) investigavam denúncias de tráfico de drogas instalando aplicativos espiões e rastreadores nos celulares e veículos dos criminosos. Tais procedimentos só podem ser adotados pela polícia judiciária e com expressa autorização da Justiça. Sendo assim, conclui-se que a apuração conduzida pelos praças e oficiais ocorria de forma clandestina.
Conforme a investigação, dois dias antes da deflagração da Five Hundred, PMs do CI colocaram GPS em dois carros pertencentes a integrantes de uma quadrilha liderada por Antônio César Campanaro, conhecido como Toninho do Pó. Os “carrapatos” foram instalados durante uma abordagem aos suspeitos. A conduta teria sido adotada porque os policiais tiveram conhecimento de que a organização criminosa traria para o DF uma carga de 500 kg de maconha.
A operação, com o objetivo de apreender o entorpecente, foi deflagrada em 27 de junho de 2018, por determinação do então subcomandante da Inteligência. Foram convocados militares do Patrulhamento Tático Móvel (Patamo) e do Grupo Tático Operacional (Gtop) 22, de Taguatinga.
PMs do DF são denunciados por tortura e sumiço de 50 kg de maconha
Durante a ação, os policiais trocavam mensagens por meio de um grupo criado no aplicativo WhatsApp batizado de “Op. five hundred”. Assim que Toninho do Pó foi localizado, em um posto de combustíveis de Samambaia, militares à paisana mandaram uma mensagem avisando os demais.
Após perseguição, o traficante foi abordado em uma estrada de terra nas proximidades da DF-180. Os policiais prenderam o homem e, com ele, foram encontrados 50 kg de maconha. A apreensão foi informada por meio do grupo no aplicativo: “50 kg tá na mão”. Os militares algemaram Toninho do Pó e seguiram ao Recanto das Emas, em direção a uma chácara onde acreditavam estar escondidos os 500 kg da droga. Os PMs não encontram o local, mas permaneceram com o criminoso detido.
Choque na região genital
A equipe decidiu interromper as buscas e parou em um bar para assistir a um jogo de futebol. Após a partida, os militares teriam passado a torturar o preso. Segundo o apurado pelos policiais civis do DF, os PMs tentaram, com uso de violência física e mental, descobrir onde estava a carga de meia tonelada de erva. Um dos meios empregados para obter a confissão de Toninho do Pó foi deixá-lo exposto ao sol por um longo período. Além disso, lesionaram mãos e pernas do suspeito com golpes e recorreram a métodos utilizados na época da ditadura militar, como aplicar choques na região genital do suspeito.
“Os denunciados o sujeitaram a um sofrimento mental decorrente de ter sido conduzido para uma área descampada e erma, ficando em poder dos agentes estatais armados por horas, sem saber se sairia vivo dessa situação ou se seria conduzido a uma delegacia”, diz trecho da denúncia do MPDFT apresentada à Justiça em 30 de junho deste ano.
Como as torturas não surtiam efeito, os homens de farda passaram a “negociar” com Toninho a sua liberação em troca da informação sobre a localização da droga. O traficante, então, acabou aceitando a proposta e passou o endereço da chácara, que ficava na Ponte Alta do Gama. Lá, os militares encontraram a carga e fizeram a apreensão. No entanto, para cumprir o acordo, liberaram o traficante, que saiu dirigindo o próprio carro e acompanhado por quatro policiais.
“Assim, em razão da promessa de vantagem indevida, todos os acusados deixaram de praticar ato de ofício, não efetuando a prisão do narcotraficante, satisfazendo, com isso, o interesse pessoal de localizar e de se apossar do carregamento de maconha”, ressaltou o MPDFT.
Depoimentos colhidos ao longo das investigações indicam que nem todos os militares escalados para a “missão” sabiam da conduta ilegal. Um cabo da PMDF alegou aos delegados da PCDF que, ao chegar na chácara, perguntou sobre a localização do traficante. Os colegas teriam informado que ele teria fugido a pé pelo matagal. Engambelado, o cabo se embrenhou na vegetação em busca do bandido e mais: acionou o helicóptero da corporação, que sobrevoou a região em uma busca inútil.
A ocorrência foi registrada no mesmo dia, na 20ª Delegacia de Polícia (Gama). Outro fato chamou atenção: os PMs não comunicaram ao delegado a apreensão dos 50 kg de maconha. Ainda de acordo com o registrado em boletim, eles mentiram e alegaram que o traficante não havia sido encontrado.
Central clandestina
Em conversas obtidas pela Polícia Civil, policiais do Centro de Inteligência da PM citam a existência de uma central clandestina de investigação montada no CI da corporação. Um dos militares tinha acesso, inclusive, ao sistema da PCDF e pesquisava informações pessoais e registros criminais dos criminosos que buscavam prender.
Em um dos diálogos, verificou-se que dois dos militares falavam abertamente da relação com traficantes. Um deles pergunta quanto seria a parte do informante. De acordo com os policiais civis, o indício demonstra que os acusados tinham o hábito de trabalhar ilicitamente com mensageiros, provavelmente liberando uma parte da droga apreendida para esses colaboradores. Em outro trecho, os acusados admitem a clonagem do WhatsApp de um traficante e, por meio desse recurso, conseguiram apreender 6 quilos de maconha no Recanto das Emas.
Uma pessoa teria perguntado aos PMs envolvidos sobre a identidade desse “colaborador”. Na conversa, desconfiam a real intenção de quem fez o questionamento e ressaltam que o informante já teria trabalhado com outras unidades policiais. Um dos militares, então, tranquiliza os companheiros dizendo que ele “nunca deu problema”, mas pondera que “cobra caro”. Confira:
PMs do DF são denunciados por tortura e sumiço de 50 kg de maconha
Nas mensagens de áudio, um policial diz: “Estão querendo jogar verde para ver se a gente conhece o cara [informante]. Conhecem antes da gente, não tem por que perguntar se ele é confiável”. Em outro trecho, um militar fala: “A primeira pergunta foi se ele [o informante] passou a situação lá dos 500 kg do ano passado. Disse que o menino ia passar uma situação, mas que estava meio assim com o moleque. Stive, não fala nada, porque ela tá é jogando verde. Quer confirmar a história”. Na gíria dos quartéis, “Stive” refere-se a um companheiro de farda.
Confira os nomes dos PMs denunciados pela 1ª Promotoria de Justiça Militar do DF, que pertence ao MPDFT :
– Tenente Reniery Santa Rosa Ulbrich
– Sargento Afonso Andrade de Moura
– Cabo Wesley Felisberto Ferreira de Souza
– Cabo Joaci Lacerda de Alcântara Junior
– Soldado Diego de Souza Coelho
– Sargento Éderson Pereira da Silva
– Sargento Fernando Roberto Moreira
– Cabo João André dos Santos Simplício
– Cabo Kleiton Volveno Esser Donda
– Cabo Thiago Gomes da Silva
– Soldado Thiago Belisário dos Santos
– Soldado Eterno Tomaz Borges Sobrinho
– Cabo André Gripp de Melo
– Subtenente Ronaldo Rosse de Souza
Dolus Malus
O esquema dos policiais começou a ruir em 26 de novembro de 2018, na primeira fase da Operação Dolus Malus (fraude, em latim). Os PMs foram detidos acusados de extorsão e abuso de poder contra traficantes.
Durante o cumprimento dos mandados, um dos militares foi flagrado por agentes da PCDF com maconha e crack, além de anabolizantes e balança de precisão. Também foram apreendidos munição de fuzil, revólveres e pistolas sem registro.
A operação foi um desdobramento da Torre de Babel, deflagrada pela Divisão de Repressão ao Crime Organizado (Draco), em 10 de outubro de 2018. O principal alvo, à época, era Toninho do Pó. No entanto, nas interceptações telefônicas, policiais civis constaram relatos da tortura a qual o narcotraficante sofreu por parte dos PMs.
Torre de Babel
Durante a segunda fase da Torre de Babel, o alvo eram traficantes. Segundo a PCDF, os bandidos desviavam cargas da Região Sul para São Paulo, Paraná e DF. Da capital federal, o produto do roubo seguia para o Nordeste. As mercadorias serviam como moeda de troca para os entorpecentes, comercializados no Distrito Federal e em Goiás. Com o dinheiro obtido por meio da atividade criminosa, a quadrilha adquiria imóveis e carros de luxo.
Confira imagens da Torre de Babel:
PMs do DF são denunciados por tortura e sumiço de 50 kg de maconha
Toninho do Pó foi preso no ano passado, em Morro de São Paulo (BA), município baiano distante 250 quilômetros de Salvador. Policiais acharam, na ocasião, R$ 76 mil em fundo falso da Hilux do homem apontado como líder da organização criminosa.
Foram cumpridos 57 mandados de busca e apreensão e de 48 prisões. Eles são provenientes de dois inquéritos expedidos pela Vara Criminal de Recanto das Emas e pela 1ª Vara de Entorpecentes de Brasília.
O outro lado
Com relação à prisão e à denúncia feita pelo MPDFT, a Polícia Militar do Distrito informa que “por meio de sua Corregedoria, presta todo o apoio aos órgãos investigativos e acompanha todo o trâmite do processo”.
“A PMDF destaca, ainda, que, conforme a lei, os policiais podem ser excluídos dos quadros da Corporação após conclusão de processo administrativo ou sentença condenatória transitada em julgado”, diz o texto.
Sobre a suspeita da existência da chamada “central clandestina de investigação” montada dentro do CI, a corporação destacou que “todos os indícios e provas estão sendo apurados; respeitando os direitos à ampla defesa e ao contraditório”.
“Retaliação”, diz advogado
O advogado Marcelo Almeida, que defende os acusados Afonso Moura, Wesley Souza, Diego Coelho, Joaci Alcântara, Eterno Tomaz Sobrinho, João Simplício, Thiago Silva e André Gripp, respondeu, também por meio de nota, que as reportagens publicadas sobre o caso estão distorcidas.
Almeida detalha que, há mais de um ano, a PCDF, que conta com aparatos investigativos, tentou prender Toninho do Pó e apreender a droga. “Por outro lado, os policiais militares ora acusados, os quais realizam policiamento ostensivo nesta capital, lograram êxito em apreender mais de 200 kg de maconha”, diz o texto assinado pelo advogado.
“Embora possa soar que a apreensão de drogas realizada pelos policiais militares ora acusados tenha provocado um desconforto por parte dos policiais civis que investigavam Toninho do Pó, sem, contudo, lograrem êxito na prisão deste e, assim, estarem praticando qualquer tipo de retaliação em desfavor dos PMs acusados, ainda assim quer a defesa técnica entender que inexiste qualquer conduta desta natureza, até porque, acredita-se de forma veemente na seriedade dos trabalhos realizados pela PCDF”, diz Almeida.
O defensor reforça que, independentemente de quem fez a apreensão da droga, “a verdade é que a única beneficiada foi a sociedade do Distrito Federal”. Ele acrescenta que os militares acusados ostentam ao menos 517 elogios em suas respectivas fichas “pelos bons serviços prestados”.
Por fim, Marcelo Almeida alega ter realizado representações junto à Corregedoria do Ministério Público do DF, Corregedoria da Polícia Civil do DF e ao Departamento de Controle e Correição da Polícia Militar, bem como comunicou ao juízo da Auditoria Militar do DF quanto a existência de possíveis indícios de irregularidade nas investigações que concluíram pelo oferecimento de denúncia em desfavor dos policiais militares. A defesa dos demais acusados não foi localizada.
Promotor rebate
O titular da Promotoria Militar do MPDFT, Nísio Tostes, rebate o defensor. “Não teve nenhum erro pelo que vi da representação. Agora, é preciso aguardar as entidades competentes avaliarem essa denúncia do advogado”, ponderou.
Tostes reforçou ainda a seriedade da operação que envolveu as duas corporações. “Seja da Polícia Civil, da Cecor, da Corregedoria da PMDF, o trabalho foi primoroso e em conjunto, até mesmo na assinatura das peças. Tudo feito para apurar um crime, independentemente de quem tenha cometido. Não foi nada direcionado pela Polícia Civil ou a fim de prejudicar um policial militar. Foi um trabalho extremamente profissional”, ressalta.
O que diz a PCDF
Em nota, a Polícia Civil do DF informou que a Cecor “desenvolve um trabalho de investigação qualificada, de forma técnica e sempre orientada à garantia dos direitos fundamentais, com estrito respeito à legislação vigente e em busca da verdade real, o que ocorreu no caso em questão”, diz o texto. Ainda conforme a corporação, a investigação foi acompanhada e avalizada pelo MPDFT e pela Corregedoria da Polícia Militar”.
Fonte: Metrópoles