Por Ailton Rocha: “Não é demais afirmar que o Velho Chico agoniza”

Jozailto Lima

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“Há os que degradam o Rio por ignorância e por ganância”


Nas águas do Rio São Francisco, o engenheiro agrônomo sergipano Ailton Francisco da Rocha navega muitíssimo bem. Seja nas macro questões problemáticas, seja nas grandes soluções que esse Rio sinaliza para uma grande parcela da sociedade brasileira, com suas águas que produzem energia, matam sede de pessoas, dessedentam sede de animais e multiplicam riquezas pelos caminhos da irrigação que gera alimentos.

Ailton Rocha sabe das dores e das alegrias desse magnífico curso d’água iniciado em Minas Gerais, na Serra da Canastra, chamado de Velho Chico, ou Opará dos indígenas, e descoberto em 4 de outubro de 1501 pelo português Américo Vespúcio, que o nominou de Francisco em homenagem ao santo do dia.

O engenheiro Ailton Rocha, que é superintendente de Recursos Hídricos na Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano e Sustentabilidade de Sergipe, não é um alarmista de carteirinha, mas também não encontra tintas rosas para pintar o presente e o futuro do São Francisco.

Ao contrário. Ele faz sérios alertas. “O aquecimento global, evidenciado por 98% dos cientistas que atuam na área climática, tem proporcionado mudanças climáticas e provocado secas recorrentes. Quando adicionamos este fenômeno natural da seca, o desmatamento (48% da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco se encontra desmatada), o desperdício, a poluição e a fragilidade de governança, não é demais afirmar que de fato o então caudaloso Velho Chico agoniza”, diz o pesquisador.

Ailton Rocha está falando de um monumento aquífero, cujas ameaças que lhe ocorram estarão umbilicalmente ligadas à centenas de milhares de vidas. “A Região Hidrográfica do São Francisco ocupa 7,5% do território brasileiro, abrangendo sete Estados – Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e Distrito Federal”, diz ele.

E aqui, com uma gravidade não muito comum a outros grandes rios. “A precipitação média anual na Região Hidrográfica do São Francisco é muito abaixo da média nacional, apresentando frequentes situações de escassez de água. Cerca de 54% do território da bacia hidrográfica se localiza no Semiárido, com registro de períodos críticos de estiagem. Conhecido como o rio da integração nacional, ele requer cuidados, principalmente nas suas áreas de recarga, haja vista 95% do seu potencial hídrico concentrar-se nos Estados de Minas Gerais e Bahia”, diz.

Para um rio deste porte e deste significado, seria de se esperar que as políticas púbicas de uso de suas águas e de proteção de sua bacia fossem maiores e melhores. “Em 9 de agosto de 2016, o Governo Federal lançou, no âmbito do Comitê Gestor do Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o Plano Novo Chico, que tinha como objetivos facilitar ações do poder público nas áreas de meio ambiente, saneamento e de infraestrutura. A intenção do governo era a de promover o uso sustentável de recursos naturais, melhorar as condições ambientais e a disponibilidade de água em quantidade e qualidade para os mais diversos usos. Mas, mais uma vez, a tão conclamada revitalização do rio São Francisco não saiu do papel”, constata Ailton.

“Tenho dito que em país tropical como o nosso, e no caso do Rio São Francisco, com extensa área no semiárido, o desmatamento, principalmente nas áreas de recarga, é uma grande ameaça a sua sustentabilidade hídrica. Mesmo porque precisamos ter uma visão integrada entre águas superficiais e subterrâneas, que são como irmãs siamesas”, diz..

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A Cedro de São João natal, cercado pelas águas do São Francisco: terá nascido daí a paixão pelo Rio?

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Na infância, com olhar ativo, no colo de uma das tias

A REDUÇÃO DA VAZÃO É PREOCUPANTE
“Em 2004, a vazão média natural do São Francisco era de 2.850 metros cúbicos por segundo. Houve uma redução de quase 350 metros cúbicos da vazão média natural num intervalo de pouco mais de 10 anos e isto é muito preocupante”.

JLPolítica – Como é que podemos definir hoje o potencial hídrico do Rio São Francisco em comparação com o das décadas de 1970, 1960? O Rio reduziu, ou não, drasticamente a sua vazão?
Ailton Rocha
 – Em 2004 a vazão média natural do Rio São Francisco, segundo o Plano Decenal, era de 2.850 metros cúbicos por segundo. No Plano Diretor, elaborado em 2015, a vazão média natural do rio São Francisco passou a ser de 2506 metros cúbicos por segundo. Portanto, houve uma redução de quase 350 metros cúbicos por segundo da vazão média natural num intervalo de pouco mais de 10 anos e isto é muito preocupante.

JLPolítica – Até onde essa escassez hídrica pode levá-lo a um estágio de insustentabilidade?
AR – 
O aquecimento global, evidenciado por 98% dos cientistas que atuam na área climática, tem proporcionado mudanças climáticas e provocado secas recorrentes. Quando adicionamos este fenômeno natural da seca, o desmatamento (48% da bacia hidrográfica do Rio São Francisco se encontra desmatada), o desperdício, a poluição e a fragilidade de governança, não é demais afirmar que de fato o então caudaloso Velho Chico agoniza.

JLPolítica – Qual é o elo entre a redução aquífera do Rio São Francisco e o desmatamento da sua bacia hidrográfica?
AR –
 Tenho dito que em país tropical como o nosso, e no caso do Rio São Francisco, com extensa área no semiárido, o desmatamento, principalmente nas áreas de recarga, é uma grande ameaça a sua sustentabilidade hídrica. Mesmo porque precisamos ter uma visão integrada entre águas superficiais e subterrâneas, que são como irmãs siamesas.

JLPolítica – Ela – a bacia do Rio São Francisco – sofre mais do que as bacias de outros grandes rios?
AR –
 As ameaças são muito semelhantes. Ou seja, desmatamento, poluição, desperdício e falta de governança. Entretanto, no Rio São Francisco estas ameaças são potencializadas ocasionando conflitos pelo uso da água entre abastecimento público, geração de energia, mineração, navegação, irrigação, pesca e a preservação ambiental. Com o agravante de que a topografia do rio São Francisco é plana que proporciona um grande acúmulo de sedimentos na sua calha em decorrência do assoreamento, alterando a dinâmica e comprometendo a biodiversidade.

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Ailton Rocha com a esposa, a cirurgiã-dentista Verônica Rocha, e a filha Laura Rocha: uma família muito integrada

UM RIO GRANDE NUMA REGIÃO DE CHUVA ESCASSA
“A Região Hidrográfica do São Francisco ocupa 7,5% do território brasileiro, abrangendo Bahia, Minas, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e Distrito Federal. A precipitação média anual na Região é muito abaixo da nacional, apresentando frequentes situações de escassez de água”

JLPolítica – O fato de ele ser, ao longo do seu grande curso de 2,8 mil quilômetros, um rio de boa parte de agreste e de semiárido, lhe é um agravante a mais?
AR – 
A Região Hidrográfica do São Francisco ocupa 7,5% do território brasileiro, abrangendo sete Estados – Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e Distrito Federal. A precipitação média anual na Região Hidrográfica do São Francisco é muito abaixo da média nacional, apresentando frequentes situações de escassez de água. Cerca de 54% do território da bacia hidrográfica se localiza no Semiárido, com registro de períodos críticos de estiagem. Conhecido como o rio da integração nacional, ele requer cuidados, principalmente nas suas áreas de recarga, haja vista 95% do seu potencial hídrico concentrar-se nos Estados de Minas Gerais e Bahia.

JLPolítica – De quantos rios é constituído o grande curso do Rio São Francisco?
AR –
 A divisão da bacia hidrográfica do Rio São Francisco compreende 34 sub-bacias hidrográficas. No alto São Francisco (afluentes mineiros do Alto São Francisco, Pará, Paraopeba, Entorno da Represa Três Marias, Rio das Velhas, Rio de Janeiro/Formoso, Jequitaí, Alto Preto, Paracatu, Pacuí, Urucuia, Pandeiros/Pardo/Manga, Carinhanha MG/BA, Rio Verde Grande), no Médio São Francisco (Corrente, Alto Grande, Médio/Baixo Grande, Paramirim/Santo Onofre/Carnaíba de Dentro, Verde/Jacaré, Margem Esquerda do Lago de Sobradinho; Submédio São Francisco (Salitre, Rio do Pontal, Garças/GI6/GI7, Curaçá, Brígida, Terra Nova/GI4/GI5, Macururé, Pajeú/GI3, Moxotó); Baixo São Francisco (Curituba, Seco/Talhada, Alto Ipanema, Baixo Ipanema/Baixo São Francisco/AL, Baixo São Francisco /SE).

JLPolítica – A quem competiria ditar normas e leis para reabilitar, florestalmente falando, a grande bacia do Rio São Francisco? À iniciativa privada ou ao Governo da União?
AR –
Em janeiro de 1997, entrou em vigor a Lei 9.433/1997, também conhecida como Lei das Águas. Esse instrumento legal instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH – e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – Singreh. Segundo a Lei das Águas, a Política Nacional de Recursos Hídricos tem seis fundamentos.

JLPolítica – Quais são eles?
AR – 
A água é considerada um bem de domínio público e um recurso natural limitado, dotado de valor econômico. A Lei prevê que a gestão dos recursos hídricos deve proporcionar os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e participativa, contando com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades. Também determina que, em situações de escassez, o uso prioritário da água é para o consumo humano e para a dessedentação de animais. Outro fundamento é o de que a bacia hidrográfica é a unidade de atuação do Singreh e de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Portanto, é muito importante a participação e o envolvimento dos usuários de água na preservação dos recursos hídricos.

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Com o pai Zé Mindom: ele é poeta

USO DA ÁGUA É PRIORITÁRIO PARA HUMANOS E ANIMAIS
“A Lei prevê que a gestão dos recursos hídricos deve proporcionar usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e participativa, com a participação do poder público, usuários e comunidades. Determina que o uso prioritário da água é para o consumo humano e dessedentação de animais”

JLPolítica – Seria ilusório, ou hipoteticamente impossível, instituir-se uma espécie de royaltie da água, que remunerasse a donos de terras que preservassem coberturas vegetais ao longo da bacia?
AR –
 A cobrança pelo uso de recursos hídricos é um dos instrumentos de gestão da Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei 9.433/97, e tem como objetivos dar ao usuário uma indicação do real valor da água; incentivar o uso racional da água; e obter recursos financeiros para recuperação das bacias hidrográficas. Além disto existe algumas boas iniciativas como Programa Produtor de Água, que prevê o pagamento por serviços ambientais entre outros.

JLPolítica – Há em Minas Gerais uma consciência ecológica maior do que nos Estados do Nordeste quando a pauta é o São Francisco?
RA – 
Há um apelo muito forte da nascente até a foz pela preservação e recuperação do Rio São Francisco e muitos viram carranca para defendê-lo. Entretanto, ainda existe os que degradam por ignorância e aí é preciso amplo trabalho de educação ambiental. E há os que degradam por ganância- para estes, tem que haver a atuação do poder de polícia do Estado para puni-los.

JLPolítica – Quem mais consome a água do Rio São Francisco, entre o agronegócio e as populações em dessedentação os mais de 500 municípios que de Minas a Sergipe dependem dele?
AR – 
Com uma extensão de 2.863 km e uma área de drenagem de mais de 639.219 quilômetros quadrados, essa vasta área integra as regiões Nordeste e Sudeste do país, percorrendo 505 municípios, em seis Estados – Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe -, além do Distrito Federal. A distribuição das outorgas de origem superficial entre os diversos usos indica que o uso mais outorgado é o da irrigação (76%), seguido do abastecimento público (e consumo humano, com 8%) e da indústria e mineração (3%). Os usos com captação subterrânea mais outorgados na bacia são a irrigação (58%), a indústria e mineração (20%) e o abastecimento público (e consumo humano, com 11%).

JLPolítica – Como entra a irrigação nessa distribuição?
AR – 
A irrigação é o uso predominante em todas as regiões fisiográficas, com 38% da vazão de retirada no Alto, 91% no Médio, 90% no Submédio e 85% no Baixo São Francisco. No Alto São Francisco, é logo seguido do abastecimento urbano, com 29% e do abastecimento industrial, com 27%. O abastecimento urbano é também o segundo uso mais consumidor de água nas restantes regiões fisiográficas, embora com apenas 8% no Baixo, 6% no Submédio e 4% no Médio São Francisco. Considerando o total de demandas, para os diferentes usos, as maiores vazões de retirada estão nas bacias dos rios Paracatu (12%), das Velhas e do Alto Rio Grande (ambas com 9%), dos rios Curaçá (8%) e Verde Grande, do Baixo Ipanema e Baixo SF (6%), dos rios Pontal, Corrente (5%) e Paraopeba e do Entorno da Represa de Três Marias (4%).

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Aqui, Ailton Rocha recebe o título de engenheiro agrônomo do ano

HÁ DEGRADADORES EM DUAS FRENTES
“Há um apelo muito forte da nascente até a foz pela preservação e recuperação do São Francisco e muitos viram carranca para defendê-lo. Entretanto, ainda existe os que degradam por ignorância e aí é preciso amplo trabalho de educação ambiental. E há os que degradam por ganância”

JLPolítica – Qual é o seu conceito do que aconteceu até agora como a chamada transposição das águas desse rio para o Nordeste Setentrional?
AR – 
Na minha opinião, a transposição contribui para a segurança hídrica da região. Conhecido como Projeto de Integração do Rio São Francisco – PISF -, que consiste na transposição de água para locais da região semiárida do Nordeste Setentrional, nos Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, a obra de transposição é complexa tanto no quesito engenharia quanto no quesito gestão e, por isso, necessita de uma grande capacidade de articulação entre os órgãos do Governo Federal com os Estados receptores da água do São Francisco. O processo de transposição do rio São Francisco teve início há mais de uma década e a autorização para uso das águas do Velho Chico dependeu de estudos ambientais e da atuação da Agência Nacional de Águas – ANA – no processo de concessão da outorga. A Resolução 411 da ANA concedeu, em 2005, autorização ao Ministério da Integração Nacional do direito de uso de recursos hídricos do rio São Francisco para o Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional.

JLPolítica – Como será normatizada a captação dessa água?
AR – 
Segundo o normativo, as captações de água tanto para o eixo leste, quanto para o eixo oeste obedecerão a uma vazão mínima de 26,4 metros cúbicos por segundo, respeitando as projeções de consumo humano de água para 2025. A liberação máxima de água nos dois eixos será de até 114,3 metros cúbicos por segundo, excepcionalmente quando o nível de água do reservatório de Sobradinho estiver alto (corresponder a 94% do volume útil e ao volume de espera para controle de cheias).

JLPolítica – O senhor veria fatalismo nos que apontam risco de morte plena e fatal do Rio São Francisco?
AR –
 Há uma série de ameaças ao rio São Francisco que demonstram uma situação preocupante, pois indicam a agonia do Velho Chico – e que aqui vou elencá-las. O desmatamento expressivo, com 47% da bacia, com conversão de áreas potenciais e prioritárias para conservação para utilização agropecuária, do insatisfatório grau de proteção das áreas legalmente protegidas, notadamente face ao desmatamento e a lacunas na conectividade entre áreas potenciais e prioritárias para conservação e unidades de conservação, do número elevado de espécies com estatuto de ameaça, em particular das restritas à área de remanescentes de Mata Atlântica. O estoque pesqueiro em declínio, a elevada intensidade de consumo de água do setor agropecuário, os baixos índices de atendimento de abastecimento de água, coleta de esgotos e resíduos sólidos, principalmente no Submédio e Baixo São Francisco, e para a população rural. A disposição inadequada de efluentes e resíduos, a produção de eletricidade – sistema nacional muito dependente dos recursos hídricos do São Francisco -, os conflitos com as comunidades tradicionais no que diz respeito a terras e a distribuição dos recursos hídricos. Os problemas acentuados de qualidade da água superficial em algumas sub-bacias hidrográficas (rio Paraopeba, rio das Velhas, rio Verde Grande), e indícios de agravamento da contaminação por tóxicos e orgânica em alguns corpos d´água; a ausência de estudos hidrogeológicos e de monitoramento para a maioria dos aquíferos; os problemas de desertificação e de qualidade da água subterrânea no semiárido e descumprimentos pontuais para alguns usos no Alto São Francisco; o reduzido potencial hidrogeológico e significativa mineralização e a salinização das águas subterrâneas do semiárido; as águas subterrâneas contaminadas devido a atividades humanas (Alto e Médio São Francisco), com particular destaque para os postos de combustíveis e a agricultura; as secas prolongadas que causam diminuição de vazão de nascentes, os problemas de assoreamento e dificuldades e riscos à navegação em vários trechos da hidrovia do São Francisco; a superexploração de recursos hídricos, sobretudo no Médio, Submédio e Baixo São Francisco; a superexplotação de sistemas aquíferos (Salitre/sub-bacia Verde/Jacaré e Bambuí/sub-bacia Verde Grande); a existência de vários usos conflitantes com expressão significativa, tais como os diversos usos consuntivos, a manutenção de ecossistemas, a produção de energia, a navegação, a pesca e aquicultura e o turismo e lazer, a que se devem acrescentar a necessidade de controle de cheias e a descarga de contaminantes, a acentuada regularização do curso principal do rio São Francisco que afeta os ecossistemas; os problemas de articulação interinstitucional (no planejamento, no gerenciamento e na fiscalização); a ausência de uma estratégia de gestão compartilhada das águas subterrâneas e superficiais; as insuficiências na implementação da política de segurança de barragens, particularmente no Submédio e Baixo São Francisco, e a desconfiança e descrença da população nos instrumentos de ordenamento e gerenciamento dos recursos e do território.

JLPolítica – O que é que, em síntese, leva à morte um rio perene?
AR –
 Em região tropical como a nossa, com extensas áreas no semiárido, as principais ameaças são secas recorrentes, desmatamento (principalmente nas áreas de recarga), poluição, desperdício e fragilidade da governança.

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Posse na Comissão de Direito Previdenciário da OAB-SE

AS COMPLEXIDADES DA TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS
“A obra de transposição é complexa tanto no quesito engenharia quanto no de gestão e, por isso, necessita de uma grande capacidade de articulação entre os órgãos do Governo Federal com os Estados receptores da água do SãoFrancisco”

JLPolítica – Qual é o conceito que o senhor tem do retorno que a Chesf faz ao Rio São Francisco pelos grandes benefícios monetários e financeiros que ela aufere com suas águas na produção de energia?
AR – 
A Chesf, que tem no São Francisco oito de suas 12 hidrelétricas, repassa em média R$ 20 milhões por ano para a revitalização da bacia hidrográfica (esta informação precisa ser checada, grifo nosso).  A CF – Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos para Fins de Geração de Energia Elétrica – é um percentual do valor de venda da energia gerada que as concessionárias de geração hidrelétrica pagam pela utilização de recursos hídricos.

JLPolítica – Quem gerencia esses recursos?
AR – 
A Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel – gerencia a arrecadação e a distribuição dos recursos entre os beneficiários – Estados, Municípios e órgãos da administração direta da União. As concessionárias pagam 6,75% do valor da energia produzida a título de Compensação Financeira, avaliada de acordo com uma Tarifa Atualizada de Referência – TAR -, definida anualmente por meio de Resolução Homologatória da Aneel. Conforme estabelecido na Lei 8.001, de 13 de março de 1990, com modificações dadas pelas Leis 9.433/97, 9.984/00 e 9.993/00, são destinados 45% dos recursos aos Municípios atingidos pelos reservatórios das UHEs, enquanto que os Estados têm direito a outros 45%. A União fica com 10% do total. Geradoras caracterizadas como Pequenas Centrais Hidrelétricas –PCH -, são dispensadas do pagamento da CF. O percentual de 10% da CF que cabe à União é dividido entre o Ministério de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal – 3% -, o Ministério de Minas e Energia – 3% – e para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – 4% -, administrado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. O percentual de 0,75% é repassado ao MMA para a aplicação na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. O rateio dos recursos entre os beneficiários é proporcional ao percentual de área inundada dos Municípios pelo reservatório da central hidrelétrica, considerando ainda o repasse por regularização a montante, também na proporção das áreas inundadas. É importante notar que os critérios de repasse da CF não contemplam os impactos a jusante dos reservatórios causados pela operação das usinas, somente a área inundada por eles, a montante das barragens. O volume total de recursos repassado pela CF é significativo face aos investimentos realizados em revitalização, e muito superior aos recursos da cobrança pelo uso dos recursos hídricos na bacia.

JLPolítica – Qual é a voz que o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF – tem junto a órgãos federais?
AR –
O CBHSF foi instituído pelo decreto presidencial de 5 de junho de 2001, sendo um órgão colegiado, com atribuições normativas, deliberativas e consultivas no âmbito da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, vinculado ao Conselho Nacional de Recursos Hídrico – CNRH -, nos termos da Resolução CNRH 5, de 10 de abril de 2000.

JLPolítica – Com que função?
AR – 
Tem por finalidade realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia, na perspectiva de proteger os seus mananciais e contribuir para o seu desenvolvimento sustentável. O CBHSF, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e vinculado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, tem a Associação Executiva de Apoio à Gestão de Bacias Hidrográficas Peixe Vivo – AGB Peixe Vivo -, como entidade delegatária das funções de Agência de Água, aprovada pelo CNRH.

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Com colegas da Superintendência de Recursos Hídricos

AS CAUSAS DE MORTE DE UM RIO
“Em região tropical como a nossa, com extensas áreas no semiárido, as principais ameaças são secas recorrentes, desmatamento (principalmente nas áreas de recarga), poluição, desperdício e fragilidade da governança”

JLPolítica – Como são distribuídas suas atividades institucionais?
AR – 
As atividades político-institucionais do CBHSF são exercidas por uma Diretoria Executiva, formada por presidente, vice-presidente e secretário. Além desses, devido à extensão territorial abrangida, há os coordenadores das Câmaras Consultivas Regionais – CCR – nas quatro regiões fisiográficas da bacia. A Diretoria Executiva e as CCR constituem a Diretoria Colegiada do Comitê e têm mandatos coincidentes, renovados a cada três anos, por eleição direta do plenário. O CBHSF possui também Câmaras Técnicas, que examinam matérias específicas, de cunho técnico-científico e institucional, para subsidiar a tomada de decisões do plenário. Essas câmaras são compostas por especialistas indicados por membros titulares do comitê. De acordo com a Lei 9.433/97, o CBHSF é o responsável pela condução e aprovação do Plano de Recursos Hídricos. Neste instrumento, estão presentes as seguintes premissas regulatórias: prioridades para outorga de direito de uso, condições para o uso múltiplo dos reservatórios, propostas quanto aos usos não outorgáveis e para áreas sujeitas à restrição de uso.

JLPolítica – Como o Comitê tem se manifestado?
AR – 
Esse colegiado se constitui no ambiente privilegiado para o debate das questões relativas aos recursos hídricos e para a articulação dos organismos e políticas intervenientes, além de ocupar-se da arbitragem de conflitos entre usos ou usuários, em primeira instância administrativa. O CBHSF tem manifestado, em diversas oportunidades, a sua percepção sobre os problemas da bacia e as implicações da operação dos reservatórios das hidrelétricas sobre a gestão dos recursos hídricos. De maneira geral o posicionamento do CBHSF expressa na necessidade de harmonizar os usos principalmente diante da situação de que os mesmos não mais se restringem apenas à bacia, a exemplo da transposição de água para outras bacias e a geração de energia para o Sistema Interligado Nacional. O CBHSF é a base da pirâmide do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – porta de entrada de conflitos, o local de promover a síntese destes múltiplos interesses no Plano da Bacia Hidrográfica; a importância do rio como de integração nacional (litoral e sertão), e uma vez que o rio São Francisco está também situado no semiárido, é fundamental atender os múltiplos usos e construir um pacto das águas. Daí a importância do fortalecimento do papel do Comitê nessa articulação com os demais órgãos envolvidos na problemática, com o reconhecimento de que todos os interesses são legítimos na discussão e que a sociedade deve caminhar no rumo da auto-gestão.

JLPolítica – No que deu aquele projeto federal de revitalização do rio?
AR –
 Em 9 de agosto de 2016, o Governo Federal lançou, no âmbito do Comitê Gestor do Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o Plano Novo Chico, que tinha como objetivos facilitar ações do poder público nas áreas de meio ambiente, saneamento e de infraestrutura. A intenção do governo era a de promover o uso sustentável de recursos naturais, melhorar as condições ambientais e a disponibilidade de água em quantidade e qualidade para os mais diversos usos. O plano pretendia dar condições para que as ações de zoneamento ecológico e econômico da região avançasse e que as unidades de conservação fossem consolidadas. Além disso, pretendia criar novas áreas de proteção, fortalecer as ações de fiscalização ambiental e de apoio à gestão de resíduos sólidos. Pretendia envolver os setores público e privado, urbano e rural. Entre as ações, estavam as de proteção e controle das nascentes, saneamento básico, infraestrutura hídrica, irrigação, fiscalização e unidades de conservação. Tinha como foco no curto prazo, entre 2016 e 2019, as iniciativas visando à conclusão de obras de saneamento e de abastecimento, com o objetivo de garantir o fornecimento de água à população. Mas, mais uma vez, a tão conclamada revitalização do rio São Francisco não saiu do papel.

JLPolítica – Quais seriam as cinco ações mais básicas e elementares para essa tal revitalização do Rio São Francisco?
AR – 
O Plano da Bacia Hidrográfica identificou os principais desafios que estão relacionados com a resolução dos principais problemas identificados. Os mais mencionados foram: a) resolver os problemas de governança, notadamente simplificar e desburocratizar o sistema de outorgas, intensificar a fiscalização em todas as áreas de atuação da bacia hidrográfica e melhorar a articulação entre os órgãos que intervêm no gerenciamento das águas da bacia hidrográfica (municipais, estaduais e federal); b) investir significativamente na melhoria do sistema de saneamento; c) apostar na conscientização ambiental da população e restabelecer sua confiança nos instrumentos de ordenamento e gerenciamento dos recursos e do território e nos organismos que os elaboram e aplicam; d) implementar um plano estruturado e abrangente de revitalização da bacia hidrográfica com reflorestação das áreas mais prejudicadas (cerrado, caatinga e mata ciliar) e das que garantem proteção de nascentes e mananciais; e e) implantar o pacto das águas com definição de vazões de entrega numa percepção integrada das águas superficiais e subterrâneas.

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Advogado sergipano de OAB 6914: dia da entrega da carteira

ATRIBUIÇÕES DO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA
“Tem por finalidade realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia, na perspectiva de proteger os seus mananciais e contribuir para o seu desenvolvimento sustentável”

JLPolítica – Qual é a visão que a Governo do Brasil e a chamada sociedade civil tem da importância de preservação de matas ciliares?
AR –
 As ameaças relativas ao estado de conservação da fauna e flora da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco estão muito associadas ao desmatamento expressivo registrado na bacia. As espécies exóticas e, em particular, as invasoras, são um dos principais fatores de ameaça à flora nativa. Apesar das Unidades de Conservação cobrirem cerca de 11% da área da bacia, esta apresenta um grau de proteção atualmente insuficiente relativamente à biodiversidade em presença e às ameaças que sobre esta incidem. É de notar que, das áreas de mata ciliar presentes nas Áreas de Preservação Permanente associadas aos cursos d’água principais e secundários mais relevantes da bacia, apenas 32% estão incluídas em unidades de conservação. Na globalidade, desde 2004, 11% das matas ciliares da bacia sofreram ações de desmatamento. No processo de participação social na elaboração do Plano da Bacia coordenado pelo CBH São Francisco foi significativamente assinalada a necessidade urgente de proceder “mais e melhores” ações de reflorestação e de recuperação da vegetação, notadamente nas cabeceiras, áreas de proteção de mananciais, e margens.

JLPolítica – O Brasil perdeu chances de ditar normas e regras mais rígidas em favor das matas ciliares quando da renovação do Código Florestal Brasileiro em 2012?
AR –
 O Código Florestal, aprovado em maio de 2012, diminui a área de floresta desmatada ilegalmente que deveria ser restaurada no país em 58%: de 50 milhões de hectares (500 mil km²) para 21 milhões de hectares (210 mil km²). Além disso, a lei permite o desmatamento legal de mais 88 milhões de hectares. Por outro lado, há avanços ambientais alcançados pela lei, como a possibilidade de comercializar títulos referentes a propriedades que conservam a mata nativa. O novo Código também torna especialmente vulneráveis o Cerrado e a Caatinga.

JLPolítica – Como assim?
AR – 
Isso porque a lei determina que propriedades que ficam nesses biomas devem manter apenas 20% de reserva legal de mata nativa -na Amazônia, o mínimo é de 80%. Como esses biomas ainda têm grandes áreas de cobertura vegetal, lá existe espaço para ampliação do desmatamento legal. Embora o novo código tenha apresentado alguns retrocessos, mecanismos introduzidos por ele, como o das Cotas de Reservas Ambientais – CRA -, representam avanços. O sistema permite que propriedades que tenham mata nativa com áreas superiores à reserva florestal determinada pelo código (80% em propriedades na Amazônia e 20% em propriedades em outros biomas) possam vender títulos referentes a esse excedente a propriedades que estejam em dívida ambiental, como forma de compensação.

JLPolítica – Não poderíamos ter uma outra relação com as reservas florestais?
AR –
 O grande sonho da conservação é agregar valor à floresta em pé. Hoje, a floresta só tem valor quando é derrubada para a exploração da madeira ou para pastagem. Um dos principais entraves que impedem que o código seja posto em prática é a falta de regulamentação do Cadastro Ambiental Rural – CAR -, sistema que pretende reunir informações sobre todas as propriedades rurais brasileiras. É preciso desenvolver um sistema transparente, integrado e federal de registro eletrônico das propriedades.

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No dia em que se formou engenheiro agrônomo pela UFRPE

UMA REVITALIZAÇÃO DE FAZ-DE-CONTAS
“Mais uma vez, a tão conclamada revitalização do rio São Francisco não saiu do papel. O Plano Novo Chico tinha como objetivos facilitar ações do poder público nas áreas de meio ambiente, saneamento e de infraestrutura”

JLPolítica – Quanto por cento da água usada para dessedentação humana em Sergipe vem do São Francisco?
AR –
 Em Sergipe, o rio São Francisco apresenta uma área de drenagem de 7.276 km², o que corresponde a 33% do território do Estado, sendo responsável por 99,8% da disponibilidade hídrica superficial. Atende as principais demandas de água para abastecimento humano e industrial através dos sistemas de adutoras, como a do Alto Sertão, Sertaneja, Semiárido, Propriá, São Francisco (responsável pelo abastecimento de água de Aracaju e sua Região Metropolitana) e os perímetros irrigados Califórnia, Jacaré-Curituba, Propriá, Cotinguiba/Pindoba, Platô de Neópolis e Betume. No momento, encontra-se em fase de estudo de viabilidade pela Codevasf o Projeto Canal de Xingó.

JLPolítica – Para o pequeno trecho do São Francisco compartilhado entre Sergipe e Alagoas, há algo que poderia ser feito por esses dois Estados e que não é realizado?
AR –
 Tenho dito que o rio São Francisco está para os Estados de Sergipe e Alagoas como o mar da Galileia está para o Estado de Israel. Portanto, é preciso um maior empenho político e institucional na defesa da sua revitalização, principalmente na manutenção da vazão hidroambiental, na definição das vazões de entrega e no combate à poluição.

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Título de Cidadão Aracajuano

Fonte: JLPolítica

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